Nos
últimos tempos, não sei dizer exatamente quanto, se muitos anos ou poucos,
popularizou-se expressões como “o recalque passa longe”, “frases para as
recalcadas”, dando a conotação de que recalque ou recalcada significa como que
um sinônimo para a palavra inveja; invejosa. Não sei dizer se realmente começou
a se popularizar pela música “Beijinho no Ombro”, mas algo ai se propagou
certamente. No entanto, ao se procurar rapidamente em algum dicionário físico
ou virtual, constata-se que tal sinônimo não existe de fato. O que acontece é
apenas uma popularização figurada da palavra. É até possível que um dia possa
entrar nos dicionários sendo um novo sentido, o que com isso mostraria como é
fantástica a flexibilidade do simbolismo das palavras. Mas no momento, não é
esse o seu significado. Mas se ela não significa inveja, do que se trata? E
qual sua relação com a psicanálise?
No
dicionário Aurélio (2009), temos a seguinte descrição da palavra recalque: 1 – Ato ou efeito de recalcar;
recalcamento. 2 – rebaixamento da terra ou da parede após o término da obra. 3
– Psicanálise: A exclusão, do campo
da consciência, de certas ideias, sentimentos e desejos. Ainda podemos contar com
a descrição de recalcar no site Priberam (2017): 1 – Calcar muitas
vezes; tornar a calcar = repisar. 2 – Insistir ou teimar numa ideia. 3 – Não
deixar manifestar = impedir, refrear, reprimir. 4 – (psicanálise). Fazer o recalcamento de.
Dito
isso, não é difícil explorar outras fontes que mostram que em nada identifique
a palavra como sinônimo de inveja, sendo essa interpretação inicialmente
errônea frente aos seus sentidos, e posteriormente uma construção figurativa
recente sobre a palavra. Por um lado podemos dizer que é interessante que
exista uma dinâmica de fato sobre as palavras. Vemos na história do nosso
idioma o quanto ele sofreu alterações ao longe de sua evolução e o quanto novas
palavras foram sendo inseridas e outras modificadas ou esquecidas ao longo das
décadas. Mas quero destacar, das descrições, sua relação com a psicanalise. O
que significa essa palavra dentro desta teoria psicológica?
Segundo
a psicanalista Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), temos que: “Para
Sigmund Freud, o recalque designa o processo que visa a manter no inconsciente
todas as ideias e representações ligadas às pulsões e cuja realização,
produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do
indivíduo, transformando-se em fonte de desprazer.”. O recalque, como um
mecanismo de defesa psíquico, existe quando a consciência não dá conta de
representar simbolicamente os elementos enfrentados naquele(s) contexto(s).
Elementos traumáticos que fogem de uma representação, de tornar aquilo palavra,
de um enfrentamento da angústia. Nesse sentido, o recalque é algo importante e saudável
naquele momento em que o indivíduo passou por uma situação difícil na sua vida.
O estabiliza frente a um dano maior, por assim dizer. Por exemplo, podemos
imaginar uma criança que, frente à impossibilidade de representar
simbolicamente (compreender a situação de...) uma violência física ou
psicológica em seus 4 ou 5 anos, pois ainda é muito nova para expandir seus
conhecimentos sobre as relações humanas e sobre si mesmo, recalca o evento
traumático para assim poder seguir em frente. Sendo possível que ao longo de
sua vida se sinta desconfortável frente a eventos que, ainda que
inconscientemente, gerem semelhanças do que havia vivenciado anteriormente.
Quando a criança, agora adolescente ou adulta, lida com um conflito, se mostra
resistente ao enfrentamento do trauma e demonstra grandes dificuldades em lidar
com situações dessa magnitude.
É
interessante que possamos lidar com os recalques, durante o processo de
psicoterapia, para explorar as angústias que nos afligem e que muitas vezes não
sabemos lhes dar sentidos, origens e nomes. Mas, ao mesmo tempo, é uma das
tarefas mais difíceis de identificar o que está recalcado. Nesse sentido
podemos entender claramente como o conceito desse termo vai muito mais longe, e
com um peso teórico importantíssimo, frente ao que vem se popularizando como
sendo um sentido de inveja. O
recalque é, pois, amontoados de excitações internas que geram desprazer. De uma forma mais clara, podemos exemplificar
da seguinte forma o funcionamento do recalque. Quando nos vemos frente a uma
situação que nos desperta nojo, por exemplo, iremos recuar frente a isso devido
as nossas fontes sensoriais. Por exemplo, se um lixo está ocupado com comida
estragada, ao ponto de encontrarmos vermes nela, não somente o cheio irá fazer
com que nos desviemos com a cabeça, mas também o olhar. Podemos fazer um
paralelo nesse sentido sobre o mecanismo de recalque. Quando o consciente (e o
pré-consciente) tem contato com o elemento que desperta o recalque, tentamos
desviar das lembranças não toleradas da mesma forma, mas num nível mais sutil,
sem muitas vezes percebermos que tal assunto carrega bem mais conteúdos do que
parece.
Em
suma, recalque não é inveja.
Artigo de Leandro Winter
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